segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Marco regulatório na internet e o receio da censura na web


Direito Virtual 

O projeto de lei que cria o marco regulatório na internet poderá ser votado nesta terça-feira (13) pelo plenário da Câmara dos Deputados. De iniciativa do Executivo, o PL 2126/11 pretende estabelecer regras claras nas relações entre usuários e provedores na internet. Mas existe o receio de que acabe dando a governos e juízes condições para controlar o conteúdo, cerceando a liberdade de expressão.

 
Neste fim de semana, Elio Gaspari, autor de livros sobre a última ditadura brasileira, apontou dois “cascalhos” no texto que permitiriam a censura da rede. O primeiro no parágrafo 3º do artigo 9º. Ele define que na provisão de conexão, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, “é vedado bloquear, monitorar, filtrar, analisar ou fiscalizar o conteúdo dos pacotes de dados, ressalvadas as hipóteses admitidas na legislação”.
 
No fundo, a internet continuaria livre, desde que cumprisse as normas de serviço, portarias e regulamentos do governo. Para o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), nossa internet poderia ficar como a da China, dependendo do partido que estiver no poder. Ele apresentou emenda supressiva do trecho “ressalvadas as hipóteses admitidas na legislação”. Espera-se que a emenda seja aprovada pelo Congresso Nacional.
 
Outro dispositivo criticado é o que afirma que, para “assegurar a liberdade de expressão”, o provedor poderá ser responsabilizado civilmente se não cumprir uma ordem judicial que manda bloquear uma conexão.


Para exemplificar o poder que se transfere ao juiz, com um dispositivo desses, seria possível a um deles até mesmo mandar que o Google retirasse da internet os 750 mil documentos secretos do governo dos Estados Unidos transmitidos ao site WikiLeaks por um soldado americano. Na China, serviços do Google, incluindo correio eletrônico, ficaram inacessíveis durante quase toda a última sexta-feira, a pretexto de garantir a segurança no 18º Congresso do Partido Comunista.
 
Enquanto fala de defesa da liberdade de expressão e de acesso à informação, o texto em análise pelos deputados brasileiros cria limitações. “É a técnica da reunião que baixou o AI-5, na qual se falou 19 vezes em democracia e criou-se a ditadura”, lembra Gaspari. Infelizmente, a imprensa brasileira, como no caso do jornal “O Estado de S. Paulo”, proibido desde julho de 2009 de noticiar a Operação Boi Barrica, da Polícia Federal, vem sofrendo na pele a censura judicial. A democracia não ganha com a censura na internet.

http://www.hojeemdia.com.br/noticias/marco-regulatorio-na-internet-e-o-receio-da-censura-na-web-1.55759

Australiano vai receber US$ 208 mil do Google por difamação

Direito Civil 



SYDNEY - O Google precisou pagar 208 mil dólares nesta segunda-feira (12) por danos a um australiano depois que um júri considerou o gigante americano de internet culpado por difamá-lo, ao divulgar material que o vinculava a mafiosos. Milorad Trkulja, de 62 anos, recebeu um tiro nas costas em 2004, em um crime que nunca foi esclarecido.

Trkulja acusou o Google de difamá-lo com material que sugeria que era uma figura criminosa importante em Melbourne e que havia sido vítima de um acerto de contas. Buscas com seu nome davam como resultado referências aos meliantes da cidade, incluindo o chefe criminoso Tony Mokbel, e um site agora desaparecido que se chamava "Melbourne Crime", especializado em questões da máfia.

O Google alegou perante a Suprema Corte de Victoria que havia se limitado a divulgar material publicado por outros e negou que o mesmo tivesse as consequências difamadoras levantadas por Trkulja. O júri se pronunciou a favor do australiano, ao determinar que o gigante de internet estava ciente do assunto e não tomou medidas quando, a partir de outubro de 2009, a vítima denunciou a divulgação dos artigos.

O juiz David Beach ordenou o Google a pagar a indenização a Trkulja, considerando que seu papel na publicação era equivalente ao de uma biblioteca ou meio de comunicação, "muitas vezes considerados como editores aos olhos da lei antidifamatória" australiana.


Disponível em: http://www.hojeemdia.com.br/noticias/australiano-vai-receber-us-208-mil-do-google-por-difamac-o-1.55774

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A (i)legalidade do ato administrativo do agente de trânsito quando da autuação de infração de trânsito por falta de uso de cinto sem abordagem do condutor

Direito Administrativo
O Código de Trânsito Brasileiro – promulgado em 23/09/1997 – adveio de uma constante necessidade e urgência da sociedade brasileira, a fim de regularizar, organizar e estruturar uma melhor condição trafegável, permitindo assim, teoricamente, a pretensa segurança na locomoção, tanto dos condutores, quanto dos pedestres nas vias terrestres.

Com base nessa premissa maior, coube ao legislador incluir um artigo específico no aludido Código de Trânsito Brasileiro, especialmente no parágrafo 2º, do artigo 1º, dispondo que “[...] O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito”.

Pois bem, para que o objetivo fosse alcançado em sua plenitude – ou ao menos almejado como objetivo primordial, caberia num primeiro momento aos condutores e pedestres respeitarem os direitos e obrigações ali contidos; num segundo momento, de forma repressiva e ostensiva, caberia ao Poder Público, por seus agentes de trânsito, fiscalizar e fazer cumprir os ditames do Código de Trânsito Brasileiro, sob pena de sofrer as penalidades legais.

Dito isso, busca o presente artigo trazer a tona um dos pontos controvertidos no âmbito dos órgãos de trânsito, quanto a questão da obrigatoriedade do agente de trânsito em fazer a abordagem direta do condutor do veículo quando da lavratura do auto de infração motivado pela ausência de uso do cinto de segurança.

Para aqueles que se filiam sobre a desnecessidade de abordagem do condutor infrator quando da flagrância, estes justificam que haveria presunção “juris tantum” do agente e, consequentemente, caberia ao condutor derrubar a veracidade descrita no auto pela autoridade competente.

De outro norte, refutando os argumentos de presunção relativa, a corrente contrária, alicerçada na alegação de que o agente de trânsito tão somente poderia autuar quando fosse realizada previamente a abordagem do condutor infrator, pois, assim o fazendo, conseguiria constatar efetivamente a transgressão imputada e, em seguida, corrigiria a conduta irregular do infrator. Além disso, em caso de não abordagem, o auto de infração estaria baseado em mera presunção, o que não se coaduna com os princípios basilares da Administração Pública.

Para estes seguidores, dos quais me afilio, a ausência de abordagem do condutor geraria nulidade do ato administrativo lavrado, evidenciando e tornando inconteste o ato cometido pelo agente de trânsito como ilegal.

Tal entendimento de ilegalidade e irregularidade do procedimento adotado pelo agente de trânsito para a confecção do Auto de Infração de Trânsito, como se a desnecessidade de abordagem fosse regra e não exceção, vem justamente a contrariar o princípio da legalidade, motivação e, especialmente, fere gravemente os objetivos primordiais que fizeram ser promulgado o Código específico.

Frise-se, não se discute a possibilidade do agente de trânsito em lavrar o Auto de Infração por falta de uso de cinto sem a abordagem do condutor – fato este possível, mas excepcional. Todavia, o que vem corriqueiramente acontecendo, desvirtua totalmente as premissas e finalidades contidas no CTB.

Primeiro, os agentes de trânsito, quer seja por inexperiência quer seja por desconhecimento da legislação de trânsito, vêm constantemente invertendo o procedimento a ser adotado, da regra para com a exceção.

Isso porque, quando da suposta flagrância de direção sem o uso de cinto, os agentes de trânsito, em sua grande maioria, vêm lavrando Auto de Infração de Trânsito, sem ao menos abordar o condutor “infrator” ou esgotar todos os recursos a fim de deter sua continuidade infracional.

Lavra-se o Auto de Infração de Trânsito, sem abordagem do condutor infrator – como se fosse a regra –, com a simplória justificativa de que teria se evadido do local ou a abordagem tornara impossibilidade de realizar, passando ao condutor, quando for surpreendido posteriormente da notificação de infração, para fazer prova negativa – ônus repudiado pelo Direito Brasileiro.

Segundo, se o agente de trânsito de fato estivesse próximo o suficiente para perceber a infração prevista no artigo 167 do CTB, deveria aquele determinar ao condutor que pare o seu veículo a fim de apurar o efetivo cometimento e/ou esgotasse todas as tentativas a fim de abordar o condutor infrator. Não o fazendo, dever-se-ia constar no Auto de Infração, sob pena de nulidade absoluta do ato lavrado.

É sabido e consabido que os agentes de trânsito (em sua maioria) nem mais atuam em flagrante os condutores, simplesmente com o subterfúgio de impossibilidade de fazê-lo, desviam a finalidade que o legislador preconizou no Código de Trânsito Brasileiro. Pelo contrário, autuam o condutor e detalham que aquele se evadiu, sem contudo esgotar todos os recursos disponíveis para abordagem por se tornar mais cômodo.

Nesse aspecto é que gera a nulidade da autuação e, consequentemente, a ilegalidade da multa imposta, por ter seus atos eivados de ilegalidade.

Terceiro, sabe-se que o procedimento adotado atualmente pelos agentes de trânsito vem em total arrepio da lei, pois ao utilizar erroneamente da presunção da veracidade – fé pública, em diversas vezes, com blocos de multas em mãos, autuam os condutores ao bel prazer, fazendo com que o condutor fique com o ônus de derrubar a “suposta” presunção de veracidade. Tal encargo de repassar ao condutor o ônus probatório, nada mais é do que obrigá-lo a apresentar provas negativas (diabólicas), estas vedadas no ordenamento jurídico vigente.

Além da necessária abordagem para apuram eventual infração – que é regra no Código de Trânsito Brasileiro, a ausência de descrição no próprio Auto de Infração de que tentou a abordagem ou buscou exaurir os meios necessários para fazê-la, independente de êxito ou não, fazem com que o ato administrativo torna-se inválido, eis que nulo de pleno direito. Falta-lhe motivação e justa causa.

Até porque, se o agente de trânsito tivesse determinado ao condutor que parasse o veículo – fosse por gestos ou por silvos de apito –, dever-se-ia ter registrado tal fato no Auto de Infração de Trânsito. E, ainda, se tivesse ocorrido desobediência a essa ordem, haveria de autuar o condutor, ainda, no artigo 195 do Código de Trânsito Brasileiro.

Ora, se o agente de trânsito que venha autuar em flagrante estiver próximo o suficiente para perceber que o condutor estaria sem o cinto de segurança, aquele tem o dever de determinar que o infrator parasse o veículo a fim de apurar o efetivo cometimento da infração.

E caso este não atendesse ao determinado, caberia o agente de trânsito constar no Auto de Infração de Trânsito, também, o cometimento da infração de desobediência inserido no artigo 195 do Código de Trânsito Brasileiro.

Convém salientar, que não se está atacando o serviço exemplar e competente dos agentes de trânsito, que muitas vezes são exercidos pelos Policiais Militares, mas sim, busca-se demonstrar que o procedimento adotado quando da autuação torna-se ilegal e irregular, quando não advém de um procedimento válido e motivado, ocasionando um ato administrativo natimorto.

Ademais, não se discute a boa-fé ou má-fé do agente de trânsito, todavia, é demais cômodo ao agente justificar a falta de abordagem do condutor com a simples descrição de “evadiu-se” ou “impossibilitado de abordagem”.

Logo, não obstante os atos da Administração Pública gozem de presunção de legitimidade e veracidade, tal presunção não se aplica, salvo melhor juízo, nos casos de infração de trânsito.

Nesse sentido, Eduardo Antônio Maggio [1] ensina que “As formas e meios de constatação da infração, a qual uma vez constatada será autuada pelo agente fiscalizador da autoridade de transito que deverá fazê-la através de comprovação legal e correta, sem deixar dúvida quanto à sua lavratura, pois a não ser dessa forma, será objeto de contestação através de recursos administrativos e até mesmo, se for o caso, o de se socorrer ao Poder Judiciário. Entretanto esse embasamento legal para a autuação não quer dizer que feita essa, já estará absolutamente comprovada, correta e consumada para fins de aplicação da penalidade de multa pelo respectivo órgão de trânsito nos termos da lei. Neste aspecto, deve-se ressaltar, conforme já mencionamos também no tema 3, que a comprovação pelo agente da autoridade pode ter erros, falhas e até mesmo injustiças, pois o ser humano é passível desses comportamentos”.

Não bastasse isso, a lei exige que o ato administrativo obedeça a forma legal.

Existindo vício de forma consistente na falta de observância de procedimentos legais ou irregularidades nas formalidades indispensáveis à existência do ato, torna-se inviável o prosseguimento de aplicação da penalidade.

Com base no princípio da autotutela, a Administração Pública tem o poder-dever de controlar seus próprios atos, revendo-os e anulando-os quando houverem sido praticados com alguma ilegalidade e revogando-os em caso de interesse público.

Assim sendo, a autotutela abrange o poder de anular, convalidar e, ainda, o poder de revogar atos administrativos. A autotutela está expressa na Súmula n. 473 do STF [2].

No caso de infração de trânsito, o artigo 65 do Código de Trânsito Brasileiro vem a confirmar a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança, senão vejamos: “Art. 65. É obrigatório o uso do cinto de segurança para condutor e passageiros em todas as vias do território nacional, salvo em situações regulamentadas pelo CONTRAN”.

A obrigatoriedade do uso tem como objetivo primordial a proteção da integridade física dos ocupantes do veículo e dos demais condutores e pedestres circulantes nas vias públicas, cabendo ao Poder Público exercitar a vigilância e tutela deste bem jurídico.

Dessa incumbência, surge o artigo 167, do Código de Trânsito Brasileiro, que preconiza a necessidade da abordagem do veículo para averiguar eventual infração, na qual poderá acarretar a aplicação de multa e retenção, até que o cinto de segurança seja colocado pelo condutor infrator: “Art. 167. Deixar o condutor ou passageiro de usar o cinto de segurança, conforme o previsto no art. 65: Infração – grave, Penalidade – multa; Medida Administrativa – retenção do veículo até colocação do cinto pelo infrator”.

Como se pode observar pelo dispositivo acima mencionado, o uso do cinto de segurança veicular é uma conduta a ser observada pelo condutor, cuja violação caracteriza infração à legislação de trânsito. Sendo conduta diversa do condutor, incide a correspondente sanção legalmente prevista, bem como a medida administrativa, consistente na “retenção do veículo até colocação do cinto pelo infrator”.

Se o infrator, por vontade própria, resolve não usar o cinto, cabe ao agente de trânsito abordar o condutor e ordenar para que aquele utilizar o cinto e, tão só assim, liberar o veículo para prosseguir o seu destino.

De nada adianta o agente constatar que o ocupante de um veículo não usasse o cinto de segurança e, mesmo assim, permitir que continuasse infringindo a lei, expondo a perigo a sua pessoa e os demais cidadãos.

É notória a intenção do legislador, ao promulgar o Código de Trânsito Brasileiro, em priorizar a integridade física dos usuários do veículo, também priorizando a correção da conduta, tanto que não se contentou apenas com a cominação da multa.

Foi além, estabeleceu, ainda, a retenção do veículo até a colocação do cinto pelo suposto infrator, medida que sobrepõe à mera reprimenda de caráter pecuniário.

Neste liame, dispõe o artigo 269, do Código de trânsito Brasileiro. Vejamos: Art. 269. A autoridade de trânsito ou seus agentes, na esfera das competências estabelecidas neste Código e dentro de sua circunscrição, deverá adotar as seguintes medidas administrativas: I – retenção do veículo; [...] §1º A ordem, o consentimento, a fiscalização, as medidas administrativas e coercitivas adotadas pelas autoridades e seus agentes terão por objetivo prioritário a proteção à vida e à incolumidade física da pessoa. §2º As medidas administrativas previstas neste artigo não elidem a aplicação das penalidades impostas por infrações estabelecidas neste Código, possuindo caráter complementar a estas.

Resta patente, que a aplicação das medidas administrativas não se submete à vontade ou disponibilidade do agente da autoridade de trânsito.

Há flagrante caráter impositivo da norma, sendo obrigação do agente aplicá-las, sob pena de nulidade do ato administrativo.

Trata-se, evidentemente de um ato administrativo vinculado, que segundo a melhor doutrina, de Hely Lopes Meirelles [3]: “[...] são aqueles para os quais a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização. Nessa categoria de atos, as imposições legais absorvem, quase por completo, a liberdade do administrador, uma vez que a sua ação fica adstrita aos pressupostos estabelecidos pela norma legal para a validade da atividade administrativa".

Em assim sendo, se a norma estabelece que o veículo deve permanecer retido até que o suposto infrator coloque o cinto de segurança, não pode o agente de trânsito simplesmente ignorar o texto legal, pois o legislador não conferiu-lhe a oportunidade de escolha.

Se a abordagem policial não fosse a real intenção do legislador, teria redigido o texto de acordo com o Art. 270, § 5º, do Código de Trânsito Brasileiro. Vejamos: Art. 270. [...] , § 5º. A critério do agente, não se dará a retenção imediata, quando se tratar de veículo de transporte coletivo transportando passageiros ou veículo transportando produto perigoso ou perecível, desde que ofereça condições de segurança para circulação em via pública.

Pelas razões acima apontadas, não resta dúvida que o agente de trânsito não pode autuar um possível infrator, pelo não uso do cinto de segurança, sem a devida abordagem do veículo, salvo em casos excepcionais.

Entendimento contrário consistiria em extirpar os princípios constitucionais do contraditório e à ampla defesa ao autuado, a quem estaria sendo imputada uma falta sem que este tivesse o direito de defender-se.

Igualmente, estar-se-ia imputando ao condutor o ônus da prova negativo (provas diabólicas), obrigação esta impossível de ser provada pela parte, o que é inadmissível em nosso direito. Não é o condutor que tem que provar que não praticou o ato, mas, a administração provar que o praticou.

E esta prova da administração ficaria provada em caso do agente de trânsito fizesse a abordagem nos ditames da lei, ou relatasse no auto de infração a sua impossibilidade, autuando o infrator, da mesma forma, na infração de desobediência acaso este não tivesse respeitado a determinação de parar o veículo para abordagem, o que não vem sendo realizado.

No mesmo norte, relevante destacar que a prioridade do Código de Trânsito Brasileiro está voltada essencialmente para a educação no trânsito, que figura como seu princípio fundamento.

Ademais, em casos da infração de trânsito pela ausência de uso de cinto de segurança, o artigo 167 do CTB, dispõe claramente que “[...] a retenção do veículo até colocação do cinto pelo infrator”, é procedimento legal necessário da norma, chegando-se a conclusão da indispensabilidade da abordagem do condutor no caso de não utilização do cinto de segurança.

Já é pacífico o entendimento do CETRAN-SC, quando de seu parecer 032/2005: “[...] no sentido de que o agente da autoridade de trânsito tem o dever de envidar os esforços necessários para, sempre que possível, promover a autuação em flagrante do infrator, sob pena de desvirtuar sua atuação, que deve ser sempre ostensiva, não podendo desviar-se da sua real finalidade que outra não é senão garantir a segurança pública e a fluidez do trânsito viário. Assim, não sendo levada a efeito a autuação em flagrante e não sendo mencionado o fato na própria peça acusatória, a teor do que dispõe o §3º do art. 280 do CTB, a insubsistência do registro é latente.

Nota-se, que a expressão “sempre que possível” no parecer acima, não é faculta ao Agente de Trânsito agir como se regra fosse a não abordagem, mas apenas e tão somente em casos extremos e excepcionais.

Destarte, conclui-se que não cabe aos agentes de trânsito, ditarem novas regras de trânsito ou inobservar qualquer preceito da legislação, pois tal fato, por si só, gera ilegalidade do ato administrativo e, consequentemente, caberá a Administração Pública anulá-lo, sob pena de privilegiar o propósito arrecadatório em detrimento do escopo educativo, bem como ceifar os princípios constitucionais que alicerçam os atos administrativos, em especial, a legalidade e a motivação.

Referências

[1] MAGGIO, Edurado Antonio. Manual de Infrações e Multas de Trânsito e seus Recursos, 2. ed. São Paulo: Ed. Jurista, 2002. p 119 e 120.

[2] Súmula STF 473: “A administração pública pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”

[3] LOPES MEIRELLES, Hely, Direito Administrativo Brasileiro, 26 ed. São Paulo: Editora Malheiros, p. 170.

[4] CETRAN/SC, Parecer nº 32/2005, Relator Conselheiro Rubens Museka Junior, data 18/11/2005, disponível no endereço http://www.cetran.sc.gov.br/pareceres/parecer032.htm

JUNIOR, Renato Rolim de Moura. A (i)legalidade do ato administrativo do agente de trânsito quando da autuação de infração de trânsito por falta de uso de cinto sem abordagem do condutor. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3413, 4 nov. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22943>. Acesso em: 5 nov. 2012.

 

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A Constituição que vigorou por 24 horas no Brasil


Direito Constitucional


Uma Constituição que vigorou no Brasil por 24 horas. Eis uma das possíveis definições para essa importante e quase desconhecida Constituição de Cádiz, aprovada pelas Cortes Gerais e Extraordinárias na Espanha de 1812.[1]
Paulo Bonavides, um dos grandes responsáveis pela divulgação no Brasil (e não apenas neste país) da Constituição de Cádiz, que celebra seu bicentenário este ano, assim relatou as vicissitudes desse texto normativo em nosso território:[2]
“Três vezes a Constituição espanhola de Cádiz, monumento do liberalismo monárquico, teve ingresso efêmero no constitucionalismo luso-brasileiro.”

A primeira vez em Portugal, ao ensejo da rebelião popular de 11 de setembro de 1821, apoiada por forças do exército; houve porém um recuo, de tal sorte que, segundo Aurelino Leal, passaram a vigorar, tão somente, ‘disposições da Constituição espanhola que se referiam ao sistema e processo eleitoral, e com a condição de que as Cortes Constituintes e Extraordinárias convocadas não alterassem na constituição futura de Portugal as suas boas essências e nem admitissem princípios menos liberais’; Leal, Aureliano, ‘História Constitucional do Brasil’, op. cit. PP. 17 e 18.
A segunda vez, na Bahia, em 10 de fevereiro de 1821, de maneira provisória e nos mesmos termos de sua adoção em Portugal, conforme assinala o sobredito historiador (Leal, Aurelino, op. cit., p. 18). A seguir, pela terceira vez, no Rio de Janeiro, por apenas 24 horas. Decretada no dia 21 de abril foi revogada no dia seguinte, por dois decretos de D. João VI, que escreveu assim, como rei, a página que melhor lhe biografa o caráter, a irresolução e principalmente a covardia da personalidade”.[3]
As raízes da Constituição Gaditana remontam ao início da rebelião contra os franceses, cujas tropas ocupavam a Espanha, no famoso “Levante de 2 de maio de 1808”, ocorrido em Madri e cujos rebeldes foram fuzilados no dia seguinte, como se pode ver no conhecido quadro de Francisco de Goya. Após a derrota dos insurgentes e o massacre francês, Espanha ergueu-se em armas e integrou-se às chamadas “Guerras Peninsulares”, que envolveram tropas francesas, de um lado, e britânicas (e de aliados), portuguesas e espanholas, de outro.
A monarquia espanhola, que inicialmente tentara se compor com Napoleão Bonaparte, dele se tornando aliada e contribuindo com o esforço de guerra, foi traída e os franceses indicaram José Bonaparte para o trono de Espanha.
Num quadro de profunda instabilidade política, com a guerra peninsular ainda em curso, as Cortes Gerais e Extraordinárias foram convocadas e iniciaram a elaboração de um texto constitucional para Espanha. Esse trabalho foi concluído aos 12 de março de 1812, na cidade portuária de Cádiz (de onde partiram os navios franco-espanhóis para a derrota na Batalha de Trafalgar em 1805). Sua vigência foi curta: de 1812 até 1814, quando o rei Fernando VII foi reentronizado e, em momento posterior, repudiou a liberal Constituição de Cádiz.[4]
Mas, o que tem de tão especial esse documento histórico?
O texto gaditano serviu de fonte de inspiração para as constituições liberais do século XX, especialmente a “Constituição vintista” de Portugal,[5] e “sobretudo, o constitucionalismo europeu e ibero-americano que antecedeu a Kelsen (1920)”[6].
A Constituição de Cádiz, por outro lado, formulou uma série de princípios absolutamente inovadores para seu tempo e que repercutiram até nosso século. A ideia de que a soberania “reside esencialmente en la Nación, y por lo mismo pertenece a ésta exclusivamente el derecho de establecer sus leyes fundamentales” (art. 3o) é perturbadora, de modo especial para um tempo em que a legitimidade do poder descansava na vontade de Deus e no direito divino dos monarcas absolutos. Com maior vigor, o artigo 2o também proclamava que: “A nação espanhola é livre e independente, e não é nem pode ser patrimônio de nenhuma família ou pessoa.”
O objetivo do governo deveria ser a “felicidade da Nação”, porquanto “o fim de toda sociedade política não é outro que o bem-estar dos indivíduos que a compõem” (art. 13). A natureza “moderada” (não absoluta) da monarquia era estabelecida (art. 14) e a divisão dos poderes restava bem clara na afirmação de que “a potestade de fazer leis reside nas Cortes com o Rei” (art. 15).
No artigo 172, fixavam-se diversas “restrições à autoridade do Rei”, ao exemplo da proibição de que ele impedisse a realização das Cortes e de que ele se ausentasse do Reino sem consentimento parlamentar. Para uma época patrimonialista, não se esqueceram de proibir o monarca de “alienar, ceder ou permutar província, cidade, vila ou lugar, nem parte alguma, por menor que seja, do território espanhol”.
De maneira inédita para os padrões constitucionais do século XIX (e de grande parte do século XX), a Constituição de Cádiz elencava os ministérios do governo, em seu artigo 222. O nível de detalhamento também chegava ao Poder Judiciário, a quem competia, de modo exclusivo, “aplicar as leis nas causas cíveis e criminais” (art. 242), sendo certo que “nem as Cortes, nem o Rei poderão exercer, em nenhum caso, as funções judiciais, avocar causas pendentes, nem mandar abrir juízos extintos” (art. 243).
A defesa da Constituição poderia ser provocada por qualquer cidadão: “Todo espanhol tem direito de representar às Cortes ou ao Rei para reclamar a observância da Constituição” (art. 373). Cabendo às Cortes tomar em consideração “as infrações da Constituição que lhes tiverem sido presentes, para lhes dar o conveniente remédio, e fazer efetiva a responsabilidade dos que tiverem a ela contravindo” (art. 372).
Em seus 384 artigos, a Constituição de Cádiz dedicava títulos à administração das unidades do Reino, à educação pública, às Forças Armadas e às emendas constitucionais. Como salienta Eduarda Chacon, “o artigo 286 preceituava a duração razoável do processo e o artigo 291 assegurava ao cidadão o direito de não produzir provas contra si mesmo. O artigo 296, por sua vez, previa o direito à liberdade mediante pagamento de fiança. Na sequência, o artigo 302 voltava a dispor sobre a legalidade, o artigo 303 proibia a tortura e o artigo 304 vedava o confisco”.[7]
Não é sem causa afirmar que o texto constitucional gaditano corresponde ao conceito moderno de uma “Constituição dirigente”, ao exemplo das constituições vigentes em Portugal e no Brasil. Outro aspecto digno de interesse para os estudiosos contemporâneos está na tese muita vez repetida de que o constitucionalismo liberal do Oitocentos foi sintético e não preocupado com direitos sociais ou com algo além da estrutura do Estado e um catálogo mínimo de direitos fundamentais. Cádiz, quando pouco, deveria figurar como uma saliente exceção a essa tese. Eduardo García de Enterría, com maior elegância e precisão, já o afirmara em um escrito de 1986.[8]
Resta contar um pouco sobre a efemeridade de sua vigência no Brasil, ainda ligado a Portugal por laços coloniais.
O episódio deu-se em abril de 1821, num sábado, dia de eleição dos deputados às Cortes em Portugal, que elaboravam uma nova Constituição para o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Conforme o relato de Eduarda Chacon, havia grupos favoráveis à permanência de D. João VI no Rio de Janeiro e outros que defendiam a imediata adoção do texto de Cádiz, “enquanto as Cortes Constituintes de Lisboa não concluíssem os seus trabalhos”. E prossegue a autora: “‘Queremos Cádiz!’, gritavam. Diante da reivindicação que lhe foi levada por um grupo do povo, sob chuva torrencial, não viu o Rei opção, senão aceitá-la”.[9]
Naquele alvoroço e com receio de um levante, D. João VI determinou que se observasse no Brasil, enquanto não ultimados os trabalhos constituintes em Portugal, a Constituição de Cádiz.
Os defensores da monarquia absoluta, no entanto, reverteram a situação: “Daí em diante, entusiasmado com o atendimento de sua reivindicação, o povo achou por bem impedir a saída dos navios que levariam a Corte Real de volta a Portugal. Evidentemente, houve forte retaliação e o saldo foi um bom número de mortos. Importa dizer apenas que o episódio serviu para dar força aos soldados que, dirigindo-se ao palácio real, de lá somente se retiraram quando foi assinado um novo decreto, revogando o anterior, (...) no qual constava que sendo a Constituição de Cádiz elaborada por ‘homens mal-intencionados e que queriam a anarquia (…) Hei por bem Determinar, Decretar, y Declarar por nulo o Ato feito ontem’.”[10]
Estudar o texto de Cádiz, para além desse pitoresco episódio da História brasileira, é descobrir que, em pleno alvorecer do século XIX, num tempo de guerra e de ocupação territorial, o grande povo de Espanha (nesse aspecto, simbolizando a latinidade) ofereceu ao mundo um respeitável, inédito e visionário contributo às instituições jurídico-políticas. O desconhecimento de Cádiz diz muito também sobre a visão pouco favorável que temos a nosso próprio respeito. E não apenas no Direito.[11]

[1] Há certa controvérsia em torno da grafia em português do nome dessa cidade espanhola. Em castelhano, escreve-se Cádiz, forma que foi escolhida por este colunista. Existem, porém, os que defendam o uso da forma Cádis.
[2] Paulo Bonavides, desde 2003, tem divulgado e estimulado os estudos sobre a Constituição de Cádiz. Essa é uma matéria de grande importância para o Direito Constitucional Comparado e não tem despertado o merecido interesse na doutrina brasileira contemporânea, com algumas importantes exceções:   CHACON, Eduarda. Bicentenário da Constituição de Cádiz, a primeira carta magna brasileira. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 80, p. 418, jul. 2012; BARRETTO, Vicente de Paulo. Viva la pepa: a história não contada da Constitución española de 1812 em terras brasileiras. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 172, n. 452, p. 201-223, jul./set. 2011; CERQUEIRA, Marcelo. A constituição na história : origem & reforma : da Revolução Inglesa de 1640 à crise do Leste Europeu. 2. ed. rev. e ampl. até a Emenda Constitucional nº 52/2006. Rio de Janeiro : Revan, 2006; BONAVIDES, Paulo. O constitucionalismo espanhol e seu influxo no Brasil : de Cádiz a Moncloa. In. AA.VV. La Constitución de 1978 y el constitucionalismo iberoamericano. Madrid : Ministério de la Presidencia, Secretaria General Técnica : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003, p. 197-219.
[3] BONAVIDES, Paulo.  As nascentes do constitucionalismo luso-brasileiro, uma análise comparativa. p. 197-235 (nota de rodapé 22). Disponível em http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/4/1510/9.pdf. Acesso em 26-10-2012.
[4] MORAES, Oswaldo de. Formação do estado federal brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 55, n. 368, p. 12-23, jun. 1966.
[5] BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil. Estudos avançados. v.14, n. 40, São Paulo set.-dez. 2000.
[6] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.
[7] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.
[8] GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Constituição como norma. Revista de Direito Público, v. 19, n. 78, p. 5-17, abr./jun. 1986.
[9] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.
[10] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.
[11] É de ser registrado que, na abertura do 8º Fórum Parlamentar Ibero-Americano, ocorrido em Cádiz, Espanha, aos 24 de outubro de 2012, José Sarney, presidente do Senado Federal, enalteceu o papel da Constituição de Cádiz na formação constitucional brasileira: “Quando falamos em separação dos poderes, em representação popular, em garantias individuais, como a de não ser preso sem ordem judicial, a proibição de tortura e confisco de bens, a inalienabilidade da casa própria, a liberdade de expressão e, na própria noção de soberania, estamos, mesmo sem saber, repetindo os homens que, aqui, no dia 19 de março de 1812, proclamaram ao mundo a Constituição das Liberdades” (Disponível em: http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2012/10/24/na-espanha-sarney-reafirma-importancia-da-constituicao-de-cadis. Acesso em 25-10-2012).
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-out-31/direito-comparado-constituicao-vigorou-24-horas-brasil


Mensalão e a telemidiatização da Justiça

Artigo do dia

Se o STF flertava —  já há algum tempo — com sua incondicionada adesão à era do populismo penal midiático, típico da sociedade do espetáculo (Debord), agora não existe mais dúvida. Sejam todos bem-vindos ao mundo do espetáculo judicial telemidiático. Como funciona a Justiça telemidiatizada? Não quero valorar, apenas descrever.
Em primeiro lugar, já não podemos falar em processo, sim, em teleprocesso. Não temos mais juízes, sim, telejuízes. Não mais sessões, sim, telesessões. Não mais votos, sim, televotos. Não mais o público, sim, teleaudiência. Se no campo das democracias populistas latino-americanas o que prepondera é o telepresidente, na era da Justiça telemidiatizada o que temos é o telerrelatortelerrevisor etc.
Não há dúvida de que com o telejulgamento ganhamos em espetáculo (estética), mas corre-se sempre o risco de se perder em segurança, porque o poder dos holofotes pode fazer da prudência, do equilíbrio e da sensatez estrelas que brilham pela ausência. 
A Justiça se tornou muito mais percebida. Agora conta com teleaudiência, com rating. Para usar um bordão famoso, nunca na história deste país os ministros se tornaram conhecidos pelos seus nomes, que estão se transformando em marcas (estrelas midiáticas) e, desta forma, começam a ter um alto valor político-mercadológico.
A espetacularização da Justiça populista não é uma vara mágica que resolva seus conhecidos problemas, ao contrário, a telejustiça é muito mais morosa e, tal como uma telenovela, gasta um semestre para desenvolver o enredo de um teleprocesso (prejudicando o andamento de centenas de outros).

O STF, na sua nova função de telejulgador populista, está lavando a alma do povo brasileiro (disse um órgão midiático). E também nos proporciona (como toda televisão) tele-entretenimento, com acalorados “bate-bocas”, entrecortados por suaves e inteligentes telemensagens de Ayres Britto do tipo “o voto minerva me enerva”.
A Justiça telemidiatizada não soluciona o problema do pão da população, mas pode contribuir muito para a fermentação do circo. Por quê? Porque não se pode esquecer que a liturgia do populismo penal evoca, antes de tudo, a expressão de uma festa(alegria, júbilo, satisfação), visto que, como dizia Nietzsche, o sofrimento do inimigo ou do desviado (do devedor), que perturbou a ordem social ou institucional, sobretudo quando veiculado por meio de algo aproximado da vingança, traz em seu bojo um incomensurável prazer.
O STF acaba de sucumbir definitivamente às racionalidades da sociedade do espetáculo. Resta saber se ainda vão remanescer lampejos de serenidade para impedir que princípios jurídicos clássicos como o da legalidade, proibição de retroatividade da lei penal mais severa etc não se tornem meros tigres de papel.
Na medida em que a Justiça começa a se comunicar diretamente com a opinião pública, valendo-se da mídia, ganham notoriedade tanto os rasteiros anseios populares de justiça (cadeia para todo mundo, prisão preventiva imediata, recolhimento sem demora dos passaportes dos condenados, fim dos recursos, ignorem a justiça internacional) como a preocupação de se usar uma retórica populista, bem mais compreensível pelo “povão” (“réus bandidos”, “políticos bandoleiros”, “a pena não pode ficar barata”, “Vossa Excelência advogado para o réu” etc).
Frenesi generalizado, porque agora o paradigma é outro, é o emotivo, o voluntarista, o performático. O telejuiz deixa de ser um terceiro equidistante para se transformar num ator midiático, daí a lógica dos reiterados pedidos — entre eles — de réplica e tréplica, que denotam perfil de parte (falando com o seu público).
O maior temor, nesse contexto, é o de que esses novos personagens da telejustiça deixem de cumprir o sagrado papel democrático de balança contramajoritária. Não poucas vezes, como sublinha com frequência o ministro Gilmar Mendes, para fazer justiça o juiz tem que decidir contra a vontade da maioria. Mas como contrariar a maioria quando a telejustiça assume a lógica das democracias populistas de opinião?
São novos megadesafios para os novos supertelejuízes, que ainda devem recordar que, no campo do direito penal, a convicção de que a voz do povo é a voz de Deus constitui um risco incomensurável. As balizas da Justiça, quando deixadas sob o comando do povo ou da pura emoção, ficam totalmente cegas (a história de Jesus Cristo que o diga).

Aos tradicionais quatro “pês” que habitam nossas cadeias (pobre, preto, prostituta e policiais) a telejustiça está agregando uma quinta categoria, constituída dos políticos e seus satélites orbitais (banqueiros, bicheiros, construtores, dirigentes petistas, tucanos privataristas etc).   Não há como não reconhecer que os teleprocessos são altamente politizados. Mas nem por isso devem revigorar nossa memória, como bem sublinhou Tarso Genro, sobre a hipotética ou real manchete de um jornal soviético, da era stalinista, que dizia: “Hoje serão julgados e condenados os assassinos de Kirov”. Será que a era da telejustiça protagonizada por supertelejuízes será capaz de nos proporcionar um mundo melhor e mais justo? 
*Luiz Flávio Gomes, jurista, foi promotor de justiça (1980-83), juiz (1983-1998) e advogado (1999-2001). www.professorlfg.com.br

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Viabilidade jurídica da alteração do registro civil do indivíduo submetido à cirurgia de redesignação sexual


DIREITO CIVIL

A questão da alteração no Registro Civil da condição do indivíduo que modificou cirurgicamente o seu sexo ainda fomenta discussões entre os estudiosos do Direito Civil.
A ausência de regulamentação específica no ordenamento jurídico brasileiro, por sua vez, apenas contribui para a disparidade nas decisões judiciais acerca do tema em liça. Desta forma, é necessário verificar se o direito brasileiro alberga, ou não, a possibilidade de, em tendo sido feita a cirurgia de redesignação sexual, poder-se alterar a sua condição também no Registro Civil, tanto no que respeita ao nome e prenome do indivíduo, como igualmente no que tange à indicação do sexo constante no assento registral.
Neste sentido, é importante acentuar que o transexual, para a medicina, é a pessoa que sofre de um transtorno de identidade de gênero permanente, razão pela qual o transexualismo encontra-se, inclusive, relacionado no CID (Classificação Internacional de Doenças). Tal transtorno, de ordem psicológica e médica, trata-se de uma condição em que a pessoa nasce com um determinado sexo biológico, mas se identifica com os indivíduos pertencentes ao gênero oposto, o que o leva a um profundo desconforto, decorrente da dissociação entre o sexo físico e aquele outro ao qual julga pertencer, com repulsa ao fenótipo apresentado e propensão à autoimolação e ao autoextermínio.
No Brasil, os critérios para a realização da cirurgia de mudança (ou adequação de sexo) são atualmente estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, nos termos da Resolução nº 1.652/2002, que revogou a anterior regulamentação do CFM – a Resolução nº 1.482/97[1].

A Resolução nº 1.652/2002, de seu turno, autorizou a realização da cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia (transformação do fenótipo masculino para feminino) e, ainda em caráter experimental, da cirurgia do tipo neofaloplastia (transformação do fenótipo feminino para o masculino). Ressalte-se que é a avaliação médica específica que identifica o transexualismo[2] e que permite conferir o subsídio necessário à realização da cirurgia, a qual exige, consoante a Resolução nº 1.652/2002, uma série de requisitos prévios para a sua autorização[3], como é o caso do acompanhamento médico multidisciplinar para demonstração da necessidade do procedimento cirúrgico pleiteado.
Postas essas considerações, é relevante parametrizar que há posições diametralmente opostas no tocante à possibilidade jurídica quanto à alteração do Registro Civil do indivíduo submetido à cirurgia de redesignação sexual.
De um lado, há os que defendem a impossibilidade de alteração, como foi o caso de julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), o qual se fundou primordialmente em três aspectos para concluir pelo indeferimento do pedido de alteração do assento: em primeiro lugar, que haveria impossibilidade de designação do transexual como mulher, em segundo lugar, que a regra é a inalterabilidade do Registro Civil e, por fim, que tal posicionamento se justificaria também para proteção de terceiros quanto a um futuro matrimônio. Nesse sentido, portanto, colige-se o acórdão:
DIREITO DE FAMÍLIA - RETIFICAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO - ALTERAÇÃO DE GÊNERO - TRANSEXUAL - IMPOSSIBILIDADE. A PARTIR DA REALIZAÇÃO DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO, SURGE UM DOS PRINCIPAIS PROBLEMAS JURÍDICOS ATUAIS, QUAL SEJA, A POSSIBILIDADE DE REDESIGNAÇÃO, OU ADEQUAÇÃO, DO SEXO CIVIL, REGISTRADO, AO SEXO PSICOLÓGICO, NOVO SEXO ANATÔMICO, E OS EFEITOS DAÍ RESULTANTES. NÃO HÁ, NEM JAMAIS HAVERÁ, POSSIBILIDADE DE TRANSFORMAR UM INDIVÍDUO NASCIDO HOMEM EM UMA MULHER, OU VICE VERSA. POR MAIS QUE ESSE INDIVÍDUO SE PAREÇA COM O SEXO OPOSTO E SINTA-SE COMO TAL, SUA CONSTITUIÇÃO FÍSICA INTERNA PERMANECERÁ SEMPRE INALTERADA. ASSIM, AFIGURA-SE INDEVIDA A RETIFICAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO DE TRANSEXUAL REDESIGNADO, MORMENTE PARA SALVAGUARDAR DIREITO DE TERCEIROS QUE PODEM INCORRER EM ERRO ESSENCIAL QUANDO A PESSOA DO TRANSEXUAL, NA HIPÓTESE DE ENLACE MATRIMONIAL.  
(Apelação Cível  1.0024.07.595060-0/001, Rel. Des.(a) Dárcio Lopardi Mendes, 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 26/03/2009, publicação da súmula em 07/04/2009)
De outro lado, encontra-se a corrente que entende ser juridicamente admissível a alteração no registro civil do transexual que realizou a cirurgia, entendimento esse alicerçado pelo Superior Tribunal de Justiça. Em caso paradigmático, de relatoria do memorável Ministro Menezes Direito[4], foi adotada posição favorável à alteração do registro civil, com esteio no princípio da dignidade da pessoa humana.
Com efeito, este princípio, que ostenta a condição de fundamento da República Federativa do Brasil, refere-se, de acordo com Alexandre de Moraes, a “um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”[5].
Nessa toada, Ingo Sarlet[6] assevera que restrições ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana somente são admissíveis quando houver conflito direto entre as dignidades de pessoas diversas. A contrario sensu, portanto, em havendo unicamente a necessidade de preservação da Dignidade do indivíduo transexual, é de se concluir pela possibilidade de alteração do registro civil.
Cabe ao Judiciário analisar o pedido proposto de alteração do assento, em razão da cirurgia realizada, tanto no que diz respeito ao nome, quando no tocante ao sexo do indivíduo.
O nome civil é a forma pela qual se identificam as pessoas naturais nos aspectos da sua vida familiar e social, estando assim diretamente ligado com a individualização da pessoa e, por isso, aos direitos da personalidade.
Desta maneira, em sendo a identidade pessoal uma garantia da dignidade da pessoa humana, percebe-se que não há como afastar a correlação entre tais preceitos. Sobre a questão, percebe-se que a Lei nº 6.015/73, em seus artigos 57 e 58, previu a relativa imutabilidade do nome. É o teor dos dispositivos, in verbis:
Art. 57 - Qualquer alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandato e publicando-se a alteração pela imprensa.
[...]
Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.
Desta feita, sendo o direito ao nome uma das expressões do direito da personalidade, a possibilidade de o juiz permitir a alteração apresenta-se como sendo a posição consentânea com o asseguramento de tais princípios inerentes à pessoa humana. Por sua vez, é certo que de nada adiantará a alteração do nome sem a alteração formal do sexo, porquanto tal situação continuaria a perpetuar a angústia psicológica do indivíduo transexual.
Neste ponto, há dissonância entre julgados que admitem a modificação do registro de nascimento. De um lado, há os que se posicionam que deverá haver a inclusão no registro civil da denominação “transexual”[7], ao passo que outros entendem que poderá haver a inclusão do sexo para qual foi procedida a mudança, fazendo-se referência à margem do assento que a alteração foi procedida por determinação judicial[8].
Esta última corrente, que admite não apenas a alteração do registro civil para modificação do nome, como igualmente do sexo para o qual foi realizada a redesignação sexual, é a que se afigura mais coerente com a linha de raciocínio que vem sendo deslindada, referente à preservação do princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana.
De fato, não obstante a primeira posição (que admite a modificação do sexo para “transexual”) constitua-se em uma evolução em face da negativa da alteração do sexo no registro, ela não consegue atender ao princípio no qual alega se fundar, uma vez que há verdadeiro prolongamento da negativa quando se impinge a classificação de “transexual” no registro civil, assim como dos danosos efeitos para o indivíduo, decorrentes da não identificação com o seu gênero biológico.
Assim, a tutela jurisdicional, para ser completa e corresponder ao efetivo atendimento do princípio da intangibilidade da pessoa humana, requer a alteração do nome e do sexo, ainda que seja feita a referência de que houve alteração por ordem judicial, a ser procedida unicamente no assento de nascimento, preservando, deste modo, o interesse de terceiros, bem como o direito à intimidade, à vida privada, à honra, à saúde e à imagem do indivíduo submetido à cirurgia de redesignação sexual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 19ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009.
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, vol. 1, 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009.
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009.
MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 7ª ed. atualizada até EC nº 55/07. São Paulo: Atlas, 2007.
VIEIRA, Tereza Rodrigues. Nome e Sexo – Mudanças no Registro Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

Notas
[1] Deve-se registrar que, nos termos da Resolução nº 1.482/97, ambas as modalidades de cirurgia de transgenitalização foram autorizadas a título experimental, como tratamento dos casos de transexualismo.
[2] Quanto aos critérios para o reconhecimento do transexualismo a Resolução nº 1.652/2002, previu, em seu artigo 3º, que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
1) Desconforto com o sexo anatômico natural;
2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
4) Ausência de outros transtornos mentais.
[3] Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto: 1) Diagnóstico médico de transgenitalismo;
2) Maior de 21 (vinte e um) anos;
3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Art. 5º Que as cirurgias para adequação do fenótipo feminino para masculino só poderão ser praticadas em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados para a pesquisa.
Art. 6º Que as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino poderão ser praticadas em hospitais públicos ou privados, independente da atividade de pesquisa.
Parágrafo 1º - O Corpo Clínico destes hospitais, registrado no Conselho Regional de Medicina, deve ter em sua constituição os profissionais previstos na equipe citada no artigo 4º, aos quais caberá o diagnóstico e a indicação terapêutica. Parágrafo 2º - As equipes devem ser previstas no regimento interno dos hospitais, inclusive contando com chefe, obedecendo os critérios regimentais para a ocupação do cargo.
Parágrafo 3º - A qualquer ocasião, a falta de um dos membros da equipe ensejará a paralisação de permissão para execução dos tratamentos.
Parágrafo 4º - Os hospitais deverão ter Comissão Ética constituída e funcionando dentro do previsto na legislação pertinente.
Art. 7º Deve ser praticado o consentimento livre e esclarecido. 
[4] Mudança de sexo. Averbação no registro civil. 1. O recorrido quis seguir o seu destino, e agente de sua vontade livre procurou alterar no seu registro civil a sua opção, cercada do necessário acompanhamento médico e de intervenção que lhe provocou a alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que se não pode comparar com qualquer outra circunstância que não tenha a mesma origem. O reconhecimento se deu pela necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se sabe, equivale o ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse adequado ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato voluntário revelou para o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a manifestou livremente é que seria preconceito, discriminação, opróbrio, desonra, indignidade com aquele que escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e na permanente luz do espírito. 2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 678.933/RS, Rel. Ministro  Carlos Alberto Menezes Direito, 3ª T., julgado em 22/03/2007, DJ 21/05/2007, p. 571)
[5] MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 7ª ed. atualizada até EC nº 55/07. São Paulo: Atlas, 2007, págs. 60-61.
[6] SARLET, Ingo. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, especialmente p. 124-141, apud MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO,  Inocêncio e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 4ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 174.
[7] Nesse sentido, os seguintes julgados: TJRS - Ap. Cív. 591019831, rel. Des. Gervásio Barcellos, j. 5-6-1991; TJRS - Ap. Cív. 598404887, rel. Des. Eliseu Gomes Torres, j. 31-5-2000, citados por DIAS, Maria Berenice. União Homossexual, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, págs. 278-282.
[8] TJSP – Ap. Cív. 439.257-4/3-00, rel. Des. Salles Rossi, 8ª Câmara de D. Privado, j. 19-4-2007; TJSP Ap. Cív. 492.524-4/0-00, rel. Des. Ary José Bauer Júnior, 2ª Câmara de D. Privado, j. 3-7-2007; TJSP – Ap. Cív. 427.435-4/3, rel. Des. Maurício Vidigal, 10ª Câmara de D. Privado, j. 11-11-2008. TJSP – Ap. Cív. 617.871-4/2, rel. Des. Maia da Cunha, 4ª Câmara de D. Privado, j. 19-02-2009; TJSP – Ap. Cív. 514.688-4/6, Rel. Des. Maurício Vidigal, 10ª Câmara de D. Privado, j. 31-3-2009.

Procuradora Federal. Pós-Graduada em Direito Civil. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).